A Associação Naval 1.º Maio caiu nos distritais, por onde não se lembrava de andar desde 1965. Este pode até ser o facto desportivo mais relevante da actualidade, ainda que na prática seja o menos angustiante. A Naval vive no fio da navalha, dias de insuportável incerteza, uma sensação de dor que pode ainda ser superada pelo sentimento de profundo abandono a que está votada. A história possível de recuperar, por entre uma amálgama de equívocos, chega a assumir contornos de crueldade, especialmente quando falamos de um dos clubes mais antigos de Portugal. Um emblema resignado a percorrer os últimos metros do “corredor da morte” à espera de um indulto, de preferência a tempo de celebrar o 125.º aniversário.
O colapso está à vista de todos e não adianta virar a cara ou as costas ao problema. A cidade, as forças vivas, o tecido empresarial, os responsáveis políticos, os rivais, o simples cidadão figueirense têm primado — salvo honrosas excepções — pela indiferença. Só assim se explica o estado deplorável em que se encontra a casa da Naval. O odioso da questão recai, em peso, sobre alguém que pode ser perfeitamente identificado pelos navalistas: Aprígio Santos parece ser o responsável máximo pela vertigem megalómana que vitimou a Naval, apontarão os principais detractores do presidente da SAD, presidente do clube, dono e senhor do emblema figueirense.
Aprígio Santos enfrenta problemas pessoais e profissionais igualmente graves e o declínio financeiro do homem do chapéu ou a mera esterilidade da galinha dos ovos de ouro da Naval não permite, há muito, continuar a suportar qualquer tipo de estrutura, muito menos a que guindou o clube da Figueira da Foz ao mais alto patamar do futebol profissional português, onde acabou por se transformar num monstro insaciável e incontrolável. O tempo das mariscadas, do leitão e do champanhe, dos 1001 afectos navalistas, torna-se cada vez mais uma recordação distante, uma miragem. A opulência deu lugar à ruína.
O estádio municipal transporta-nos para um cenário de guerra. O relvado com quase 40 anos assumiu uma existência errante, selvagem, alvo fácil de chacota nas redes sociais, acossado por drones e câmaras indiscretas que captam imagens degradantes. A vegetação apoderou-se do recinto que, não há muito tempo, acolhia 9000 adeptos. As bancadas amovíveis apodreceram, o ferro e as cadeiras foram reconvertidos em trocos que nem para comprar bolas chegam. Os torniquetes aguardam estoicamente, já sem a companhia dos eucaliptos entretanto expulsos. As torres de iluminação repousam sobre poços de água. E, mesmo sem utilização, obrigam a Naval a pagar uma taxa de 2000 euros mensais. Qualquer incumprimento leva ao corte de energia, o que não seria inédito. Aconteceu, aliás, na véspera do último Natal, deixando os jogadores “residentes” da formação sem electricidade durante nada menos do que uma semana.
Os escalões de formação, que contra ventos e marés resistem e e continuam a contribuir com títulos de campeão para o acervo do clube, vivem do esforço financeiro e dedicação dos pais dos atletas. No museu, reduzido ao espólio deixado pelos incêndios da sede, em 1997, e um mais recente — na sala de imprensa convertida em depósito da história do clube —, vão entrando os troféus dos miúdos e do remo, modalidade histórica que opera milagres no clube náutico, um dos poucos motivos de orgulho da Naval.
Sem ser autónoma, a secção de remo procura alhear-se o mais possível dos problemas que estrangulam o clube. As dívidas consomem toda e qualquer receita ou simplesmente invalidam a atribuição de subsídios. Ainda assim, a Naval consegue produzir campeões. Com três dezenas de atletas, o remo quer afirmar-se pela positiva e está a cultivar uma imagem distinta. A Taça da Beira Litoral, com os clubes da região (em infantis, iniciados e juvenis) recupera a tradição das provas de remo na foz do Mondego, numa perspectiva de mobilizar a cidade e de aproximar o centro da Figueira da Foz e o rio. Mas as pequenas vitórias do remo e do futebol de formação não disfarçam uma crise que ameaça o futuro de todos.
A Naval conta hoje 20 sócios pagantes... No mínimo, eloquente. Qualquer ajuda terá, por isso, que chegar ao destino convertida em géneros, sejam remos ou equipamentos. Longe vai o tempo em que descarregavam os camiões com os melhores barcos olímpicos vindos directamente da Alemanha. Apesar de tão penosa realidade, há quem não aceite bem a solidariedade de um clube como o Leixões, cuja oferta de equipamentos para treino feriu algumas sensibilidades.
Num estádio absolutamente surreal, resiste um pequeno espaço de oração, junto aos balneários, com a imagem da Nossa Senhora de Fátima aparentemente intocável. No fundo — que é onde o clube parece ter finalmente batido — é de um milagre que a Naval precisa. Se possível, antes da ordem de despejo que poderá ser dada a qualquer momento.
A autarquia não assume, por enquanto, uma posição de força. O estatuto de utilidade pública da Naval, função que vai cumprindo na formação, é o raio de esperança. Enquanto “senhorio”, a câmara aguarda uma resposta da SAD navalista, notificada para esclarecer o que pretendem os responsáveis fazer relativamente ao estádio.
“Antes de mais, é preciso respeitar e salvaguardar a história da Naval, que está a atingir os 125 anos de existência. O clube cumpre uma função importante enquanto instituição com estatuto de utilidade pública desportiva. Nesse sentido, temos tentado dialogar, mas há já algum tempo que não obtemos respostas”, afiança o vereador do Desporto, Projectos e Obras Municipais, Carlos Monteiro, assumindo ser impermeável a pressões.
O poder local vê-se manietado, enredado numa expectativa que se arrasta sem que possa vislumbrar-se uma solução que dignifique e honre o nome da Naval. Para agir e assumir a reparação do estádio, a autarquia teria que “despejar” o inquilino. Precisamente o que pretende evitar. A discriminação de que a câmara é acusada por não punir o incumprimento navalista — por oposição aos demais clubes — é matéria delicada, para gerir com pinças, uma vez que todos os proveitos da SAD são absorvidos pela dívida à Segurança Social e ao fisco, dívida que ninguém sabe ao certo onde começa e acaba.